Opinião

Guerras para além do tempo e da imaginação

Por Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel

Desde que me conheço por gente, acompanho o confronto entre Israel e Palestina. Na última edição do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2004, lembro ter participado de uma caminhada em que os gritos de ordem eram: "Bush, Sharon, malditos assassinos! E viva a luta, do povo palestino!". Dez anos depois, enquanto passeava nas proximidades do capitólio do Colorado, em Denver, nos Estados Unidos, passou uma grande passeata com muçulmanos gritando "Free, free, Palestine!", carregando bandeiras da Palestina. Anos antes disso, eu havia lido o livro Filho do Hamas, de Mosab Hassan Yousef, que mesmo sendo filho de um dos líderes do Hamas na época (início dos anos 2000), abandona o grupo e denuncia todas as atrocidades cometidas pelos extremistas e terroristas. Além dessas simples lembranças, antes mesmo de eu sonhar em nascer, a região já contava com milhares de anos de conflitos.

Digo isso porque os confrontos dessa natureza não se resolvem tão facilmente como muita gente imagina. A criação de um estado palestino, por exemplo, é justa e resolveria muita coisa, mas nem mesmo se aproximaria de encerrar o derramamento de sangue. Se isso ocorresse, muito provavelmente teríamos o Hamas comandando um estado, como o Talibã governa o Afeganistão e o Hezbollah lidera o Líbano (mesmo que muitas vezes extraoficialmente). Ou talvez, não. Vai saber. Quero dizer que infelizmente não há fórmula mágica para terminar uma guerra dessas, assim como já aconteceu em diversos outros confrontos na história recente.

Em Meio sol amarelo, por exemplo, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, apresenta um romance sobre a guerra de Biafra, que ocorreu no final dos anos 1960 quando a parte de maioria cristã do país quis se separar da parte muçulmana, resultando em uma tragédia humana. Assim como, de certa forma, está acontecendo agora - com o ocidente se metendo para evitar a criação de um novo estado - os americanos e europeus também se meteram no confronto para ajudar o lado do norte a amassar os separatistas do sul. Apesar de a guerra ter "terminado", na internet é fácil ver que essa é uma história não resolvida, pois há sites, rádios, páginas nas redes sociais, etc, defendendo a justa criação de Biafra.
Mas sem ir tão longe, podemos olhar para o continente americano.

Recentemente li O reino deste mundo, um clássico publicado pelo cubano Alejo Carpentier em 1949. Nele, Carpentier conta a história de Ti Noel, um escravizado pelos colonizadores franceses que vivia no Haiti antes da revolução civil de 1791-1804. Ele viveu a época da pré-revolução, acompanhando a execução de líderes negros, como Mackandal e Bouckman, depois sobreviveu a luta armada vivida pelos haitianos que dizimaram os franceses até fundar seu próprio estado e, por fim, quando Ti Noel achou que finalmente seria livre, foi novamente escravizado pelo governo do primeiro rei negro do Haiti, Henri Christophe (1767-1820), fazendo com que ele refletisse sobre a bestialidade humana e sobre como a nossa espécie nunca vai conseguir viver em plena liberdade e harmonia - mesmo quando, aparentemente, chega a seus objetivos.

Numa metáfora ao final do livro, que tem apenas 132 páginas, Carpentier compara o nosso sistema de viver em sociedade à história de uma comunidade de gansos, que começa a viver em paz, mas que em pouco tempo tem dois gansos disputando o poder. "O clã mostrava-se agora uma comunidade aristocrática, absolutamente fechada a todo indivíduo de outra casta. O Grande Ganso de Sans-Souci não queria o menor contato com o Grande Ganso de Dondon. Se tivessem se encontrado frente a frente, teria estourado uma guerra. Por isso Ti Noel logo compreendeu que, embora insistisse durante anos, jamais teria o menor acesso às funções e ritos do clã. Foi-lhe dado a entender claramente que não lhe bastava ser ganso para acreditar que todos os gansos fossem iguais". Assim os gansos, como as pessoas, embarcavam em guerras sem fim, guerras que vão além do espaço, do tempo e da imaginação.

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